Debate sobre a lista da ANS dominou as atenções na área do direito privado

A possibilidade de os planos de saúde serem obrigados a cobrir tratamentos não incluídos na lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi uma das controvérsias de maior repercussão na pauta do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2022, com ampla cobertura na mídia e reflexos no Congresso Nacional.

Nos Embargos de Divergência em Recurso Especial (##EREsp##) 1.886.929 e 1.889.704, discutiu-se a natureza da lista de procedimentos e eventos em saúde instituída pela ANS – se taxativa ou exemplificativa. O julgamento foi iniciado em fevereiro e concluído em junho na Segunda Seção.

Por maioria de votos, a seção definiu que o rol da agência reguladora é, em regra, taxativo, ou seja, não admitiria ampliações. Além disso, o colegiado estabeleceu outros três entendimentos.

Apesar da taxatividade da lista, o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, salientou que, em diversas situações, é possível ao Judiciário determinar que o plano garanta ao beneficiário a cobertura de procedimento não previsto pela ANS, dependendo de critérios técnicos e da demonstração da necessidade e da pertinência do tratamento.

Salomão afirmou que nenhum país do mundo tem uma lista aberta de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória pelos planos privados.

Após a decisão do STJ, a questão foi discutida no Congresso Nacional, culminando com a aprovação e a sanção da Lei 14.454/2022, que estabelece critérios para permitir a cobertura de exames ou tratamentos de saúde não incluídos na lista da ANS.

Imóveis em discussão

As turmas de direito privado decidiram controvérsias sobre a caracterização do bem de família e a hipótese de usucapião por quem já possui a metade do imóvel.

No REsp 1.960.026, a Quarta Turma decidiu que um imóvel em construção pode ser considerado bem de família, cuja penhora – salvo algumas exceções – é vedada por lei. Para o colegiado, o fato de o devedor não residir no único imóvel de sua propriedade, que ainda está em fase de construção, por si só, não impede sua classificação como bem de família.

Segundo o relator, ministro Marco Buzzi, desde que não estejam configuradas as exceções à impenhorabilidade estabelecidas nos artigos 3º e 4º da Lei 8.009/1990, o imóvel deve ser considerado antecipadamente como bem de família, pois se trata de único imóvel de propriedade do casal, no qual pretende fixar sua residência.

Em outro caso, a Terceira Turma concluiu que um imóvel cedido pelo devedor à sua família pode ser considerado impenhorável. Conforme o colegiado, para fins da proteção da Lei 8.009/1990, é suficiente que o imóvel sirva de residência para a família do devedor – ainda que ele não more no local –, apenas podendo ser afastada a regra da impenhorabilidade do bem de família quando verificada alguma das hipóteses do artigo 3º da lei. O relator foi o ministro Marco Aurélio Bellizze.

No mesmo sentido, para a Quarta Turma, o imóvel único adquirido no curso da execução pode ser considerado bem de família. O relator desse caso, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o bem de família voluntário ou convencional é aquele cuja destinação decorre da vontade do seu instituidor, visando a proteção do patrimônio em relação à satisfação forçada das dívidas do devedor proprietário do bem.

“O Código Civil confere ao titular da propriedade a possibilidade de escolha do bem eleito, colocando como condição de validade apenas a circunstância de que o bem escolhido não tenha valor que ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente no momento da afetação”, destacou o relator.

No REsp 1.909.276, a Terceira Turma decidiu que a aquisição de metade de um imóvel não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana. Segundo o colegiado, o fato de os moradores, autores do pedido, já terem a metade da propriedade não atrai a vedação do artigo 1.240 do Código Civil, que impõe como condição não possuir outro imóvel urbano ou rural.

“O fato de os recorrentes serem proprietários da metade ideal do imóvel que pretendem usucapir não parece constituir o impedimento de que trata o artigo 1.240 do Código Civil, pois não possuem moradia própria, já que, eventualmente, teriam que remunerar o coproprietário para usufruir com exclusividade do bem”, afirmou o relator do recurso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

Questões de consumo

A Terceira Turma definiu que cabe ao fornecedor comprovar inexistência de defeito em ação de consumo. A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que o artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) elenca expressamente, em seu parágrafo 3º, as excludentes de responsabilidade pelo fato do produto: não ter colocado o produto no mercado, não existir o defeito, ou haver ##culpa## exclusiva do consumidor ou de terceiro.

“O ônus da prova, nessa seara, é do fornecedor do produto. Para se exonerar da responsabilidade, a ele compete provar, cabalmente, alguma das hipóteses previstas no artigo 12, parágrafo 3º, do CDC”, esclareceu.

No REsp 1.985.198, também relatado por Nancy Andrighi, a turma decidiu que a empresa vendedora de ingressos responde solidariamente por cancelamento de evento.

Para o colegiado, os integrantes da cadeia de consumo – incluindo-se a vendedora de ingressos, que recorreu ao STJ – são responsáveis pelos danos gerados ao consumidor, não cabendo a alegação de que o fato se deveu à culpa exclusiva de um deles.

“A recorrente e as demais sociedades empresárias que atuaram na organização e na administração da festividade e da estrutura do local integram a mesma cadeia de fornecimento e, portanto, são solidariamente responsáveis pelos danos suportados pelos recorridos, em virtude da falha na prestação do serviço, ao não prestar informação adequada, prévia e eficaz acerca do cancelamento/adiamento do evento”, afirmou a relatora.

Programa de fidelidade e sigilo do WhatsApp

Sob a relatoria do ministro Moura Ribeiro, a Terceira Turma considerou válida a cláusula do regulamento do programa de fidelidade de uma companhia aérea que previa o cancelamento dos pontos acumulados pelo cliente após o seu falecimento.

Ao julgar o REsp 1.878.651, o magistrado observou que esse é um tipo de contrato de adesão, unilateral e gratuito, em que a empresa aérea fica responsável tanto pelo estabelecimento das cláusulas quanto pelas obrigações decorrentes do acordo, não tendo o consumidor que pagar pelo benefício. “Sendo o contrato gratuito, deve ser interpretado de forma restritiva, nos termos do disposto no artigo 114 do Código Civil”, disse o relator ao analisar a expressão “pessoal e intransferível” contida no contrato.

Ainda no direito privado, o STJ entendeu que a divulgação pública de conversas pelo aplicativo WhatsApp sem autorização de todos os interlocutores é ato ilícito e pode resultar em responsabilização civil por eventuais danos, salvo quando a exposição das mensagens tiver o propósito de resguardar um direito próprio de seu receptor.

Para a Terceira Turma, assim como as conversas por telefone, aquelas travadas pelo aplicativo de mensagens são resguardadas pelo sigilo das comunicações, de forma que a divulgação do conteúdo para terceiros depende do consentimento dos participantes ou de autorização judicial.

“Ao levar a conhecimento público conversa privada, além da quebra da confidencialidade, estará configurada a violação à legítima expectativa, bem como à privacidade e à intimidade do emissor, sendo possível a responsabilização daquele que procedeu à divulgação se configurado o dano”, afirmou a ministra Nancy Andrighi no julgamento do EREsp 1.903.273.

Mensalidade escolar na pandemia

Em junho, a Quarta Turma rejeitou o recurso de uma mãe que pleiteava a redução proporcional das mensalidades escolares de seus filhos e a devolução parcial dos valores pagos durante o período de calamidade pública provocado pela pandemia da Covid-19.

No REsp 1.998.206, a consumidora alegou que, com a determinação de fechamento temporário das escolas – fato superveniente –, o contrato se tornou extremamente vantajoso para uma das partes. Segundo ela, a instituição de ensino reduziu de forma considerável o número de aulas contratadas e, em consequência, seus custos fixos, enquanto os pais continuaram a pagar o mesmo valor, em visível desequilíbrio contratual.

Relator do processo no STJ, Luis Felipe Salomão ponderou que não há dúvida quanto aos efeitos nefastos da pandemia na economia e nas relações privadas, em especial as de caráter sucessivo, como ocorre com os contratos de prestação educacional.

Ele recordou que, apesar de terem sido proferidas decisões judiciais e editadas leis estaduais que impuseram a redução do valor das mensalidades durante o estado de calamidade pública, também foram publicados diversos normativos com a finalidade de manter os contratos, assegurando-se, na medida do possível, a continuidade das relações jurídicas sem a aplicação dos ônus por eventual inadimplemento.

Salomão ressaltou que os serviços, embora não tenham sido prestados da forma como contratados, continuaram a ser oferecidos, de modo que não se pode falar em falha do dever de informação ou em desequilíbrio econômico financeiro imoderado para os pais de alunos, sendo interesse de ambas as partes a manutenção do pacto firmado.

“A análise do desequilíbrio econômico e financeiro deve ser realizada com base no grau do desequilíbrio e nos ônus a serem suportados pelas partes”, disse o ministro.

Plano de saúde para recém-nascido

Em maio, ao julgar um caso sob segredo, a Terceira Turma manteve acórdão que determinou a uma operadora de plano de saúde a cobertura assistencial para um recém-nascido submetido a internação que ultrapassou o 30º dia do seu nascimento, ainda que ele não tenha sido inscrito como beneficiário no contrato.

O colegiado entendeu que, apesar de a Lei 9.656/1998 prever a cobertura sem inscrição apenas para os primeiros 30 dias após o nascimento, deve ser resguardado o direito dos beneficiários que estejam em tratamento ou internados. A relatora foi a ministra Nancy Andrighi.

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